Sexta-feira, 29 de março de 2024

Seca atual em MS é duas vezes mais agressiva do que pior estiagem

Estudo feito nos Estados Unidos aponta que aquecimento dos oceanos no Hemisfério Norte vai mudar a dinâmica do bioma

Publicado em: 10/10/2021 às 07h20


O século 21 trouxe grandes desafios para a sobrevivência do Pantanal na forma que existe hoje. O Mundo das Águas passa por um período de extrema seca, que não é a pior que foi registrada em mais de um século. Porém, existe um dado que gera grau de alerta: os efeitos adversos de poucas chuvas e calor escaldante estão fazendo a água reduzir de forma muito mais rápida do que ocorreu há cinco décadas.

O registro, catalogado por pesquisadores e listado em trabalhos da Embrapa Pantanal, aponta que o Rio Paraguai enfrentou uma estiagem adversa entre os anos de 1962 e 1973. Foram 11 anos que mudaram a forma como as planícies eram alagadas.

Nesse período crítico, em 1964, houve a medição mais baixa registrada até então. A régua da Marinha do Brasil em Ladário apontou -61 cm de nível. A atual estiagem começou em 2020 e vem reduzindo pouco a pouco, a uma taxa de 2 cm ao dia, o volume de água do Rio Paraguai. E agora que a seca caminha para completar seu segundo ano, o nível mais baixo do rio está prestes a se igualar com o registro de 1964.

Enquanto há 50 anos foram precisos dois anos de escassez de chuva para reduzir a lâmina d’água, agora, em apenas um ano de seca, essa marca está prestes a ser atingida. O cenário em que se encontra o Pantanal foi observado ainda antes que esses dados fossem obtidos.

Em 7 de janeiro de 2020, pesquisa publicada pela Indiana State University na revista científica Plos One apontava para um futuro de precipitações extremas e dinâmica de seca alterada por conta de mudanças na temperatura do oceano. Um impacto direto no Pantanal.

O artigo, inclusive, é intitulado “Quo Vadis Pantanal?”, que, em tradução livre, significa “Para Onde Vai o Pantanal?”.

“O presente estudo prevê secas severas para o ecossistema do Pantanal, e essas secas serão causadas pelo aquecimento da temperatura de superfície dos oceanos que ocorre no Hemisfério Norte (Oceano Atlântico Norte e no Pacífico Norte)", apontaram algumas conclusões do artigo.

"Essas mudanças climáticas vão resultar em mudanças na dinâmica das cheias, drasticamente afetando todo o funcionamento do Pantanal, com consequências para a diversidade da vida animal e sua distribuição, bem como a sustentabilidade da atividade humana”, completam.

Os alertas feitos há mais de um ano começaram a ser identificados. A temperatura média no Pantanal aumentou em torno de 2ºC, conforme avaliação da Embrapa Pantanal a partir de análise de diferentes estudos. Em Corumbá, por exemplo, houve registro de mais de 40ºC no período de inverno.

Além disso, o Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM) divulgou na 5ª reunião da Sala de Crise do Pantanal que 2021 é um dos anos mais críticos em relação à seca.

Em prognóstico elaborado a partir de dados do sistema de alerta hidrológico, o SGB, o pesquisador Marcus Suassuna Santos concluiu que há possibilidade de que neste ano a estiagem seja a mais severa em 121 anos, superando a marca datada de 1964.

“Neste momento, essa é a quinta pior seca da história da região. Pela tendência atual, é possível que o rio alcance níveis históricos, como quando atingiu a cota de -61 cm”, explica o hidrólogo. O 6º Comando do Distrito Naval de Ladário (MS) já identificou em sua régua que o nível do Rio Paraguai naquela localização chegou a -53 cm nesta sexta-feira. Em julho, no dia 13, esse nível estava em 1,34 m.

Os impactos que essa situação gera para Mato Grosso do Sul ainda estão sendo medidos. A Embrapa Pantanal, por exemplo, conduz estudo para avaliar o impacto das queimadas e da estiagem na produção pecuária do Pantanal. O que já está consolidado é o impedimento da hidrovia da Bacia do Rio Paraguai para escoamento da extração de minério de ferro a partir de Corumbá.

O transporte de cargas para a Bolívia também foi prejudicado porque o Canal Tamengo está inviabilizado, após uma barcaça encalhar por conta da falta de lâmina d’água. Esse trajeto para o país vizinho é utilizado principalmente para encaminhar combustível, como o diesel.

Sem a utilização da hidrovia, a BR-262 está sobrecarregada com o trânsito de bitrens. A rodovia, em trecho entre Corumbá (MS) e Anastácio (MS), está construída sobre solo pantanoso, e o asfalto não resiste à carga que entre 400 e 600 caminhões carregam todos os dias.

Além do minério de ferro, outros produtos são carregados. Esse tráfego pesado também já causou a morte de dois caminhoneiros neste ano, em engavetamento que envolveu quatro bitrens, em 30 de setembro. A via chegou a ficar fechada por mais de 24 horas, pelo menos de forma parcial.

IMPACTO NOS PEIXES

Apesar de não haver números, a quantidade de peixes disponível no Rio Paraguai está diminuindo desde 2019.

“A produção de peixes tende a diminuir em anos de estiagem, pois os peixes perdem o acesso às áreas de várzea e outras áreas inundáveis, que propiciam alimento e abrigo aos alevinos e juvenis das espécies migradoras, que são aquelas de maior interesse econômico”, explica o pesquisador da Embrapa Pantanal Carlos Padovani.


Em apuração com pesqueiros e empresas de barcos-hotéis em Corumbá, há sinalização de que a quantidade de peixes que era possível encontrar durante uma viagem de 150 km agora exige a navegação de distâncias maiores.

“Essa diminuição e consequente recuperação dos estoques de peixes não é imediata, pode demorar alguns anos. Além da questão dos peixes, a seca tem causado prejuízo ambiental com as queimadas recordes, que provocaram a morte de muitos exemplares da fauna e da flora. O prejuízo econômico para a pecuária também foi grande”, identifica Carlos Padovani.

A coordenadora do Laboratório de Ecologia da Intervenção da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Letícia Couto Garcia trabalha diretamente com pesquisa que tenta implantar o uso sustentável de pecuária e outras ações no Pantanal.

Ao longo desse estudo, a equipe dela já identificou que a estiagem propiciou que o fogo em 2020 queimasse áreas que até então que não eram atingidas por incêndios de forma constante.


“O Pantanal é, por definição, bem adaptado ao fogo. Mas, nos últimos anos, observamos uma intensificação perigosa das queimadas. Cerca de 43% das áreas que queimaram no Pantanal em 2020 não queimavam há 20 anos”, explica a pesquisadora, que neste mês recebeu prêmio internacional concedido pela Unesco pelo trabalho desenvolvido no bioma.

Ela reconhece também que o ecossistema ainda precisa ser mais pesquisado, para que haja ações de recuperação. “Uma revisão global sobre avaliação do sucesso de projetos de restauração demonstra a falta de estudos que avaliem aspectos socioeconômicos, sendo que o envolvimento social é um elemento-chave para o sucesso da restauração”.